quinta-feira, 8 de outubro de 2009

SAÚDE É PRECISO ENCARAR A REALIDADE: UM TEXTO INSTRUTIVO E UM TESTEMUNHO MÉDICO - 2 (daqui a pouco parte 3)

O Programa de Saúde da Família tornou-se obsoleto. Apesar disso, expande-se sem ter a sua estratégia radicalmente reformulada.

É PERIGOSO mexer com ícones sem ser iconoclasta, mas o Programa de Saúde da Família (PSF) precisa ser rediscutido com seriedade. Caso contrário, continuaremos a gastar grandes quantias de recursos, com resultados precários.
O PSF conta com 43.024 equipes de saúde coordenadas por médicos para visitar famílias nas suas casas (tem também algumas outras funções).Gasta R$ 4 bilhões por ano e, apesar de ter começado no início dos anos 90, não conseguiu a cobertura desejada ou diminuição apreciável dos índices de morbiletalidade. Recentemente, avaliação da ONU mostrou que somos o país com o terceiro pior índice de infantil da América do Sul.
Não faltam avaliações críticas. A Unicamp (2006) conclui: médicos com formação heterogênea, especializada, sem conhecimento suficiente para atuar na atenção básica; baixa resolubilidade, falta compromisso com a comunidade; capacitações descontínuas, não atendem às necessidades.
O Ministério da Saúde, em 2002, já apontava: deficiência nos equipamentos, na infra-estrutura, nas atividades educativas e de vigilância à saúde e no sistema de referência; inadaptação às mudanças do perfil de morbidade; vinculação precária ao trabalho, elevada rotatividade; cobertura inferior a 25% em 60% dos municípios e só de 14,5% na região de Campinas.
O PSF foi copiado de uma pequena ilha que o utilizou com sucesso há 50 anos. Nosso país é um continente, e a medicina mudou completamente nesse período. Ficou mais complexa, o que torna praticamente impossível termos hoje um médico que atenda a tudo o que se deseja de um generalista (ginecologia, obstetrícia, pediatria, clínica médica e gerontologia).
A tecnologia penetrou na saúde de tal forma que tornou pouco eficiente a presença do médico na casa das famílias, onde pode constatar coisas óbvias, mas não tem possibilidade de realizar sequer procedimentos simples, como papanicolau e mamografia para as mulheres; PSA e toque retal para os homens, para citar poucos exemplos. Ou seja, passados 50 anos, o PSF, a não ser em localidades especiais, tornou-se obsoleto. Apesar disso, expande-se sem ter a sua estratégia radicalmente reformulada.
A verdade é que ele foi sacralizado ideológica e corporativamente e é usado politicamente pelos governos que se sucedem. Mesmo com distorções, tem sido mais conveniente mantê-lo e ampliá-lo.
Não estou sugerindo que o PSF deva terminar. Ele precisa continuar, mas com transformações relevantes, como ocorre em alguns municípios brasileiros, aproveitando todos os preciosos recursos humanos e financeiros utilizados.Para visitar as famílias, são suficientes os agentes de saúde, que, treinados, podem facilitar o uso do sistema e oferecer educação para a saúde e algumas ações de prevenção e detecção. O custo é baixíssimo, a eficiência é alta e a delegação é fundamental.
Os pacientes devem ser atendidos nos centros de saúde, para onde os médicos do PSF devem ser transferidos, aproveitando-se suas especialidades originais. É preciso ter aí a presença contínua de um pediatra, que é o médico da criança; um ginecologista preparado para ser o médico da mulher; um clínico, que deve exercer também gerontologia, além de um mínimo de tecnologia, como um posto de coleta laboratorial, com exames simples feitos no mesmo local, um ecógrafo e um raio X simples.
Com isso, que custa muito pouco, poder-se-á resolver 80% dos problemas na atenção primária, próximo da casa do cidadão, acabar com o martírio de idas, vindas e longas demoras e tirar a sobrecarga dos prontos-socorros e hospitais.
Para atender a toda a demanda com qualidade, a delegação de funções com treinamento prévio e o trabalho em equipe são fundamentais. Os milhares de centros de saúde que estão semi-abandonados no país passarão a funcionar com economia de vidas e recursos. Isso é o moderno em saúde.
A medicina é a ciência das verdades transitórias, pois os conhecimentos mudam constantemente. O sistema de saúde precisa ser reavaliado e transformado continuamente, com espírito crítico e pesquisa operacional, adaptando-o também às epidemiologias mutantes.

Nosso sistema, apesar do SUS na Constituição ser notável, está contaminado com cópias de modelos arcaicos e outras de países ricos que não vestem nossa realidade. Essa situação é lastimável, mas abre a oportunidade para um salto qualitativo e quantitativo apenas com uma boa gestão.

O TESTEMUNHO
Dr. Evelyn Andrade disse...
Não concordo com todo o conteúdo mas nós médicos de família temos que assumir as falhas desse modelo:não podemos negar que as condições de trabalho geralmente são precárias; que tentam nos subordinar a interesses políticos dos gestores; que apesar de ser uma equipe 90% da resolutividade é dada apenas pelo médico sobrecarregando-o; que o médico não tem autonomia para se autogerir; que consulta preventiva em 15 minutos como somos obrigados a atender é lorota; que os profissionais são contratados para gerar números de consultas e não para prestar um serviço de qualidade; etc. Lamento, mas tenho que concordar com muito do que foi dito pelo Dr. Pinotti. Evelyn (PSF São Paulo)

Um comentário:

L! Gonçalves disse...

Introduzido para ser um viável projeto de prevenção e atenção a saúde básica o PSF e o desafogo do sistema hospitalar, com o tempo e as necessidades políticas o PSF evoluiu para ESF (Estratégia de Saúde da Familia). Tanto o PSF quanto seu evolutivo tem regras e definições claras e objetivas, mas depende de pessoas com visão e vontade de transformação para realmente aconteça a atenção básica a saúde, apenas criar equipes, e distribuí-las com a finalidade apenas de garantir recursos federais e deixar que a “coisa” aconteça e lamentável.
A falta de gerenciamento e atenção para o SISTEMA, que não necessita apenas de equipes distribuídas nas regiões da cidade, mas necessita de uma estrutura multiprofissional, capaz de dar vazão aos exames complementares de todas as especialidades necessárias para garantir a saúde básica da população.
E incrível a disposição dos agentes comunitários para garantir assistência as pessoas, mas infelizmente esbarram na falta de estrutura mínima de atendimento dos postos de saúde do ESF, a falta de médicos, falta de vagas para exames, e combatem a impaciência das pessoas que estão limitadas devido a problemas de saúde e ainda são obrigadas a esperar meses para ter uma consulta ou exame realizado.
A autogestão e a estruturação de centrais de exames nos pólos de ESF são fundamentais para a viabilização do programa ESF, parcerias de público-privadas devem ser incentivadas para a melhoria desse quadro que hoje vivemos.