As manifestações que tomaram conta do Brasil nas últimas semanas
derreteram a agenda política nacional, até então dominada pela
prematuríssima campanha eleitoral, com três ou quatro candidatos já
definidos. Sejam quais forem suas origens, seus mecanismos de
propagação, virtudes, defeitos e consequências, o fato é que as
mobilizações já produziram na vida brasileira um daqueles momentos em
que “o futuro não será mais como era”, para evocar Paul Valéry.
Neste momento, partidos e governos, nas três esferas, sentem-se
acuados, mas o foco principal de tensões situa-se no Palácio do
Planalto, o grande responsável, aos olhos da população (e é mesmo!),
pela condução do País.
O governo federal já vivia uma situação difícil, em razão do
esgotamento do modelo econômico lulista: rápido crescimento do consumo,
baixo investimento, forte criação empregos menos qualificados e inflação
baixa. Esse modelo foi viabilizado pela notável bonança externa,
juntamente com o crescimento acelerado das importações, o aumento do
crédito para o consumo e a sobrevalorização cambial. Foi a época da
farra de divisas e da lei do menor esforço, com estatuto semelhante ao
da lei da gravidade.
A eclosão das manifestações coincidiu com o fim desse ciclo e a
estagflação. Elas podem não ser efeito direto das condições da economia,
mas é evidente que eclodem numa dada realidade, e não no vácuo:
desaceleração do consumo em razão do menor crescimento da renda, do
endividamento familiar elevado e da maior inflação; desaceleração da
criação de empregos menos qualificados e falta de perspectivas para os
assalariados de maior renda.
Nada pior para um governo já sem rumo do que a ventania contrária das
ruas. Daí a ansiedade, a atrapalhação e a exacerbação do marketing das
soluções virtuais. O emblema do desatino foi a tal Constituinte com o
fim específico de fazer a reforma política. A proposta, tida como
irrevogável, era de tal sorte absurda que foi revogada em 24 horas.
Ficou a pergunta: como pôde a Presidência da República errar de forma
tão bisonha? Agora, a fim de disfarçar o recuo, trocou-se a Constituinte
exclusiva pelo plebiscito, proposta impraticável.
Além do “pacto” da reforma política, a presidente propôs o pacto da
educação: 100% dos royalties do petróleo para o setor. Resumir os
problemas da educação à elevação do orçamento seria equivocado. Mesmo
assim, os novos recursos vindos desses royalties serão bem menores do
que se alardeia, pois a vinculação só vale para contratos de exploração
firmados a partir de dezembro de 2002. E eles não gerarão petróleo antes
de seis anos; dentro de uns dez o total destinado à educação poderia
chegar a R$ 8,5 bilhões anuais – cerca de 3% do Orçamento da União, dos
Estados e municípios.
Já o “pacto” da saúde consiste em importar uns 6 mil médicos
estrangeiros – a quase totalidade, cubanos. Alguém é contra água
encanada ou luz elétrica? Assim, quem se opõe a que o Brasil tenha mais
médicos? O problema é como fazer. Eles estão é mal distribuídos,
concentrados nas regiões do País com mais infraestrutura. É preciso
criar condições para que atuem no interior – e pouco se faz nesse
sentido. Nada contra, é evidente, a que profissionais de outros países
atuem aqui, desde que seus diplomas sejam revalidados mediante exames,
que o Ministério da Saúde quer dispensar. Nota: apenas 5% dos médicos
cubanos que a eles se submeteram foram aprovados.
A má distribuição dos médicos é apenas um dos problemas da saúde. O
PT reduziu de 53% para 44% a fatia dos gastos totais no setor, jogando
mais peso nas costas de Estados e municípios. A Anvisa foi loteada,
padrão Agnelo Queiroz; a Funasa, degradada. Durante a gestão petista, a
participação das despesas correntes do Ministério da Saúde no SUS caiu
de 17% para 14% do total do governo federal (excluídos o benefícios
previdenciários). A rede hospitalar tem sido fragilizada, sufocando as
Santas Casas. Se a proporção de recursos do SUS para o atendimento
hospitalar fosse a herdada do governo FHC, hoje seriam destinados a essa
área R$ 7,5 bilhões a mais por ano.
Outro “pacto” anunciado é o dos transportes urbanos: R$ 50 bilhões. A
gente fica com a impressão de que são recursos a fundo perdido. Não!
Viriam principalmente na forma de oferta de crédito a Estados e
municípios. Além disso, matéria do Valor evidenciou que, dos recursos
federais disponíveis para essa finalidade, 93% não foram ainda
utilizados. Na prática, transportes urbanos nunca foram prioridade do
governo petista. Do contrário, jamais teria lançado, há seis anos, o
alucinado projeto do trem-bala entre São Paulo e Rio, cujo custo deve
andar ali pelos R$ 70 bilhões. Por sorte, a incapacidade executiva do
governo não permitiu que o projeto andasse depressa, mas já deve ter
consumido cerca de R$ 1 bilhão, com direito à criação de mais uma
estatal. Cancelar o trem-bala e concentrar os recursos em trens urbanos
seria medida mais que oportuna quando se fala em pactos pelo Brasil.
O bom senso, aliás, recomendaria o barateamento do custo das eleições
e maior proximidade entre eleitor e eleito, como a adoção do voto
distrital. Se o Planalto quer diminuir a corrupção na máquina pública,
não precisa de propostas mirabolantes. Que se exija certificação dos 25
mil cargos de confiança e dos altos funcionários de todas as empresas
federais e se refaça com critérios técnicos todo o quadro de dirigentes
de agências reguladoras. Mais ainda, que se regulamente com urgência o
parágrafo 3.º do artigo 37 da Constituição federal, sobre a participação
dos usuários na administração pública direta e indireta, com ênfase no
controle da qualidade dos serviços.
Tais medidas, entre outras, seriam simples e eficazes. Mas no petismo
o fácil é sempre difícil, pois eles são especialistas em obter
vantagens com as dificuldades que criam, e têm a convicção de que os
problemas do País se resolvem com marketing e anúncios solenes.
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